CELSO
SISTO
A primeira vez que o vi
de verdade, ele rasgava papéis. Tão pouco menos menino que eu e já com sobras
nos olhos! Naqueles pedaços de carta, cartões e bilhetes, eu via misturarem-se
dias, meses e anos de um diário que ele construiu feliz.
Fingi não ver lágrimas.
É, fingi, Virei de costas para não intimidá-lo e ele chorou no silêncio. Lá
fora a natureza se encarregava de dublá-lo.
E aos poucos eu fui
ficando ali, imóvel, apenas para aprender mais sobre ele. Quanto tempo? Talvez o
suficiente pare perceber que naquele instante ele começava a crescer aos meus
olhos. Minha irmã juraria ter visto um monstro, eu diria apenas ter visto o
homem.
No dia seguinte, na
escola, o assunto era ecologia. A professora havia falado sobre animais em
extinção e, como sempre, pediu uma redação. E eu escrevi:
Meu pai era feito de
terra. Terra das Minas Gerais, que eu preferia acreditar que eram Minas
Individuais, porque eram só dele, muito dele.
Estava no seu jeito de
falar:
- Ara, menino! Deixa de
revestrés!
Estava nas brincadeiras
que ele me ensinava:
- Dia, compadre!
- Dia comadre!
- Os patinho tão bom?
- Vão bem, obrigado.
- Qué que eles come?
- Milho cuzido.
- Qué que eles bebe?
- Água do rio Fonfom da
cor de limão de Nossa Senhora da conceição!
Que era o modo dele me
dizer que em Minas ele foi o que eu sou hoje. E que lá, pisando descalço a
terra, ele tinha criado raízes.
E de tanto ele falar
isso, eu acreditei que ele era árvore, e foi só notar as marcas no seu rosto
para entender que a árvore trocava as folhas e que, enfim, era outono no rosto
do meu pai.
E ele regava a terra
quando os olhos se enchiam d’água. Que vinha mansamente lavando tudo, deixando
o olhar limpo para ver o depois.
E eu nadava no rio que
ele derramava, confiando que ele viria ao menor pedido de socorro!
Pai, não me deixe
sozinho!
E ele era um rio de
margens largas, de onde a gente espiava o mundo que cabia nos seus olhos.
Mas meu pai também era
fogo! Quando queria, queimava a gente com o olhar. Bastava minha mãe reclamar:
Esses meninos hoje ainda
não pararam de brigar!
Aí não havia água que
apagasse aquele incêndio. E ele não botava fogo em palavras! Fogo pelos olhos
era mais forte. Queimava mais. Impedia o tapa e a surra, mas obrigava a gente a
pensar sobre o erro.
Meu pai era ar quando ria
redondo. Enchia a sala com seu sopro, e tudo virava um grande balão:
Vem vento caxinguelê,
cachorro do mato quer me morder!
Assim soprando vida, ele
devolvia ao nosso mundo a brisa que, depois de caminhar por dentro dele,
passava para nos fazer cafuné. Nesse tempo suas folhas eram de veludo.
Hoje meu pai foi ser
natureza em outro lugar. Dizem que sou a cara dele. Um dia vou quebrar esse
espelho! Pra libertá-lo da forma e me libertar da dívida!
E foi isso. E minha
redação sofreu graves acusações:
- Isso não tem nada a ver
com ecologia!
- Eu não sabia que seu
pai era bicho!
- Seu pai é árvore, é?
- Você foi achado numa
folha de bananeira, aposto! Por isso é que você diz que é filho de árvore!
E eu, que procurava apoio
nos olhos da professora, vi que ela estava indignada e sem respostas. Pela
primeira vez!
Depois desse dia, passei
a andar com um adesivo bem grande colado no caderno:
Preserve a Natureza!
Proteja o Homem!
Nenhum comentário:
Postar um comentário