O menino estava
voltando a pé da escola. A vida para ele parecia uma coisa sempre igual. Chegar
em casa, comer, fazer lição, brincar, tomar banho, jantar, dormir, acordar. No
dia seguinte, tudo a mesma coisa outra vez.
Um ruído veio de um
terreno baldio. Parecia uma voz. Por entre as folhagens, o menino viu um
cachorro cobrindo o focinho com as patas. O bicho, de repente, resmungou:
— Isso não podia
ter acontecido!
O cabelo do menino
ficou duro feito arame. Saiu correndo, mas parou. Onde já se viu cachorro
falar? Deu risada de si mesmo. Já estava quase na 4a série. Sabia escrever, ler
e fazer contas. Aquilo só podia ser alguma confusão.
Deu meia volta e
passou de novo pelo terreno baldio. O cachorro agora estava andando de uma lado
para o outro dizendo:
— Não, não e
não!
Quase sem respirar,
o menino chegou mais perto.
Foi quando o animal
gritou:
— É a pior desgraça
que podia ter acontecido em minha vida!
O menino sabia que
aquilo era impossível. Mesmo assim, sentiu pena do cachorro, um bicho não muito
grande com o focinho sujo de terra.
O animal soltou um
uivo tão sem esperança que o menino entrou no mato e perguntou se ele estava precisando
de alguma coisa.
Dois olhos
surpresos examinaram o menino de alto a baixo. Depois, o bicho encolheu-se,
escondendo o rosto com as patas. O menino sentou-se e acariciou aquela cabeça
peluda.
— Se eu contar o
que acabo de descobrir hoje — disse o animal — você não vai acreditar.
E continuou falando
devagarinho:
— Faz tempo,
conheci uma cachorra linda. Eu estava fazendo xixi num poste. Ela passou.
Abanei o rabo. Ela também. Foi amor à primeira vista.
O menino não
conseguia piscar os olhos.
— No fim —
continuou ele — a gente acabou se casando. A cachorra era viúva e tinha uma
filha já grandinha. Cuidei dela como se fosse minha própria filha. Um dia, meu
pai veio me visitar. Ele também era viúvo. Só sei que os dois gostaram um do
outro, namoraram e casaram.
O menino queria
fugir e ficar.
— Do casamento de
meu pai com minha filha — contou o animal — nasceu uma ninhada de três
cachorrinhos que, ao mesmo tempo, são meus netos, pois são filhos de minha
filha, e meus irmãos pois são filhos do meu pai. Eu também tive três
filhotinhos. Eles passaram a ser irmãos da minha madastra, a filha da minha
mulher. Portanto, além de meus filhos, são meus tios.
As lágrimas esguichavam
dos olhos do cachorro.
— Meu pai é casado
com minha filha, ou seja, minha madastra é também minha filha. Por outro lado,
sou pai dos irmãos do meu pai, logo, pai de meu próprio pai. E como o pai do
pai de alguém é avô desse alguém … — e aí o cachorro agitou-se — descobri que
sou avô de mim mesmo!
O queixo do menino
balançava debaixo da boca.
— É duro ser avô da
gente mesmo! — exclamou o cachorro em prantos.
Abraçado com o
menino, o animal chorou ainda durante um bom tempo. Depois, enxugou as
lágrimas, pediu desculpas, despediu-se e, com ar agradecido, sumiu no matagal. Naquele
dia, o menino chegou em casa mais tarde, almoçou e foi para o quarto. Deitado
na cama, ficou só pensando. Como a vida pode ser uma coisa rica, complicada,
meio louca, bonita, espantosa e cheia de surpresas!
Conto de Ricardo
Azevedo extraído do livro Não Tenho Medo de Homem, nem do Ronco, publicado
pela Fundação Cargill Ilustrado por Paladino
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