sexta-feira, 20 de junho de 2008

O Livro de Todos

Este é o texto de abertura do Livro de Todos, que será lançado em versão impresa na 20ª Bienal Internacional do Livro em São Paulo, no Anhembi, de 14 à 24 de agosto de 2008. Eu fiz parte desta história, história de produção coletiva... 

Capítulo 1 - O mistério do texto roubado 

Eram onze da noite de domingo quando Bruno e seus pais chegaram em casa, vindos de uma festa de aniversário. Festa muito boa, comida farta, brincadeiras, conversação animada; Bruno até teria ficado mais tempo, junto com seus amigos. Mas o dia seguinte era de trabalho e o pai, Antônio, não quis se demorar. O que deixou Bruno contrariado, mas sem muitas alternativas: se ficasse, perderia a carona do pai; seria difícil conseguir outra. Além disso também tinha de levantar cedo. Foram, portanto, ele ainda resmungando.
Como de costume, o pai deixou o velho carro estacionado na entrada da casa. Atravessaram o pequeno e bem-cuidado jardim, orgulho de Magda, a mãe de Bruno; quando chegaram à porta da frente constataram, com espanto, que estava entreaberta.
– Não é possível! – protestou Magda. – Você esqueceu de fechar a porta, Antônio!
Não, ele não tinha esquecido de fechar a porta. O que tinha acontecido era outra coisa, muito alarmante: a porta, como logo constataram, fora arrombada. Entraram correndo, os três, acenderam as luzes e espalharam-se pela casa para ver o que tinha sido roubado. Para surpresa de Antônio e Magda estava tudo no seu lugar. Nenhum armário aberto, nenhuma gaveta, nada havia sido mexido. Estava tudo ali, as duas tevês, os equipamentos de som, os eletrodomésticos, as roupas.
– Pelo jeito – disse Antônio, ainda assustado, mas já aliviado – os caras devem ter se assustado com alguma coisa, com algum barulho e saíram correndo.
Já Bruno não tinha boas notícias a dar. Do quarto dele, haviam levado um objeto, um único objeto que, no entanto, poucas semanas antes, quando o ganhara, havia sido motivo de enorme orgulho e de alegria: o seu computador portátil. Bruno recebera-o como prêmio num concurso de contos promovido por um jornal da cidade em que moravam. Era o seu primeiro computador; até então o pai, que trabalhava como eletricista numa pequena empresa e não ganhava muito bem, não tivera dinheiro para lhe comprar um. Já tinha feito até a promessa – seria o presente do próximo Natal – quando acontecera a premiação. Você não precisa gastar essa grana, anunciou Bruno, radiante.
O computador mudou a vida do rapaz. Todos os dias, ao voltar da escola, sentava à sua mesa de trabalho e ficava horas digitando; às vezes até esquecia de comer, e a mãe tinha de lembrá-lo que era hora de jantar. Lucila, a namorada, se queixava:
– Você dá mais atenção a seu computador do que a mim.
O que não era verdade, claro. Bruno adorava a garota, namorava-a desde os doze anos (agora estava com quinze). Lucila, uma menina morena e miudinha, de grandes olhos escuros e boca carnuda, fascinava-o; além disso, era meiga, era compreensiva, era inteligente – a paixão da minha vida, declarava Bruno com fervor. Contudo, tinha de reconhecer: o computador mudara sua vida. Não que gostasse de surfar, ou de joguinhos, ou de baixar filmes ou músicas. Não, usava o computador exclusivamente para escrever.
Bruno queria ser escritor. Um sonho mais que compreensível, aliás. Desde criança histórias fascinavam-no: histórias contadas pelos pais, pelos tios, pelos avós, pelos vizinhos, pelos professores, pelos colegas; histórias que ouvia no ônibus, ou na lanchonete, ou no supermercado. Aquelas narrativas – banais, às vezes – abriam-lhe as portas de um mundo desconhecido, fascinante. E, porque gostava de ouvir histórias, tornou-se também um leitor. Lia os livros infantis que a mãe lhe comprava, os livros que os professores recomendavam no colégio. Mais tarde começou a freqüentar uma livraria perto de sua casa e ali descobria verdadeiras preciosidades. Era um leitor voraz, destes que atravessam a noite lendo. A mãe ficava impressionada: nunca vi ninguém gostar tanto de livros como você, meu filho, dizia. O pai também confessava sua admiração – e seu entusiasmo.
– Eu nunca fui de ler muito – dizia – porque meu pai achava que livro era perda de tempo, que o negócio era trabalhar, ganhar dinheiro. Hoje me arrependo. Mas você, Bruno, é o meu orgulho. Você está fazendo o que eu deveria ter feito.
Por volta dos dez anos Bruno começou a colocar no papel suas primeiras historinhas. Mostrava-as para os pais, para os professores. Todos achavam que ele dava mesmo para a coisa, estimulavam-no a prosseguir. E Bruno prosseguia. Um amigo ofereceu-se para colocar seus contos num blog, outro publicou-os no jornal de um clube. E aí veio a grande oportunidade: o concurso. No qual Bruno se inscreveu com muita esperança. Até então escrevia à mão ou então numa velha máquina de escrever que um vizinho lhe dera de presente. Tinha certeza de que, com o computador, escreveria com muito mais facilidade. Poderia mexer nos textos, coisa que, ele sabia, era muito importante. Como lhe dizia o Joaquim, seu professor de literatura, escrever é reescrever:
– Nós sempre podemos aperfeiçoar o nosso texto. Quando você escreve alguma coisa, pergunte-se: isto é o melhor que eu posso fazer? Se você tiver dúvidas, não hesite, escreva de novo.
Bruno não tardou a descobrir que o professor tinha razão. Realmente, reescrever era essencial e ele se surpreendia ao descobrir como seu texto melhorava quando ele o retrabalhava. E isso era facilitado pelo computador.
Mas agora o computador se fora. Ele abriu os braços, desamparado, deixou-se cair numa cadeira, sem conseguir conter um pranto convulso.
Os pais tentavam acalmá-lo: afinal, não acontecera nenhuma tragédia, não haviam sido assaltados, nem machucados, considerando as barbaridades que viam na tevê, tinham tido sorte, podiam dar graças a Deus.
– E tem mais – disse Antônio – você se lembra do computador que eu tinha lhe prometido como presente de Natal? Pois amanhã mesmo nós vamos comprá-lo para você. Papai Noel vai ter de chegar mais cedo neste ano.
Bruno olhou-os, tentou sorrir. Eram muito bons, os seus pais. Os colegas de colégio até tinham inveja dele, e costumavam dizer, brincando, que ele era o filho mais mimado do mundo..
O certo é que ele se dava muito bem com Antônio e Magda. Eram pais, e eram amigos, e confidentes…Vocês conseguem ler os meus pensamentos, costumava dizer, e aquela oferta do computador mostrava exatamente isso, como eles estavam sempre dispostos a ajudá-lo. Nas poucas vezes em que, na infância, estivera doente, os pais não saíam de perto e muitas vezes a mãe, que trabalhava como caixa num supermercado, pedia licença do emprego para ficar cuidando do filho. E agora, ansiosos com a dor do garoto, dispunham-se a resolver o problema. Acreditavam que para isso bastaria comprar outro computador, quem sabe até da mesma marca e do mesmo modelo.
Mas, infelizmente, para Bruno isso não era a solução porque o ladrão não tinha roubado apenas o computador. O ladrão tinha roubado o computador e o conteúdo do computador.
E qual era o conteúdo do computador?
Uns poucos arquivos: algumas piadas, letras de música, coisa sem muita importância. Mas havia algo ali que para Bruno era muito, mas muito valioso.
Uma história. Uma história que ele estava terminando de escrever.
Alguns dias depois de ter ganho o computador, Bruno acordara, às três horas da madrugada, com a idéia de uma história. Uma idéia tão fantástica que o fez saltar da cama e correr para o computador: precisava começar a escrevê-la imediatamente. Sentia que estaria dando um grande passo para a realização de seu sonho, um sonho que tinha desde a infância.
A idéia tinha a ver com um intrigante episódio que lhe fora contado pelo vigia de um depósito ali perto e com quem Bruno às vezes conversava quando, à noite, voltava para casa. O homem, que todos no bairro conheciam como Juca Colosso (porque sempre usava essa palavra, “colosso”: “O jogo foi um colosso!”, “O almoço estava um colosso”) que era um grande narrador. O episódio referia-se a uma viagem noturna que fizera, voltando do Rio de Janeiro, onde trabalhara algum tempo. A seu lado vinha um homem que conhecera no Rio – de vez em quando tomavam um trago juntos – e do qual sabia apenas o apelido: Pirão. Não chegava a ser coincidência porque Pirão viajava muito, e para várias cidades.
No ônibus, conversaram por algum tempo; a certa altura Pirão disse que estava com sono; puxou o boné sobre a cara e logo estava ressonando. Juca Colosso, cansado, preparou-se para dormir também. Mas não conseguia adormecer, porque, dormindo, Pirão começou a resmungar coisas. E o que ele dizia deixou Juca surpreso: falava sobre drogas, sobre tráfico de cocaína. Pelo jeito, constatou Juca, o homem fazia parte de alguma gangue; a todo instante mencionava coisas como “O chefe mandou trazer o bagulho”, “O chefe quer a grana já”. Outras vezes falava de um tal de Coquinho, que podia ser esse chefe.
Juca Colosso não sabia o que pensar. Estaria apenas sonhando, o Pirão? Ou estaria falando de coisas que aconteciam na realidade? Seria um traficante? E se fosse traficante, o que deveria Juca fazer? Homem decente, tinha horror de bandidos e de criminosos, sobretudo daqueles que lidavam com droga – perdera um irmão, assassinado por uma gangue. Como dizia para a mulher, se encontrasse algum traficante, não hesitaria em denunciá-lo para a polícia. Mas o gentil e simpático Pirão era mesmo um traficante – ou era alguém que tivera um sonho estranho? Debatendo-se naquela dúvida, Juca acabou adormecendo, de pura exaustão. Quando acordou, com o sol já alto, o ônibus estava chegando à cidade. Desembarcaram, Pirão disse onde poderia ser encontrado, despediu-se efusivamente e foi embora.
– Não sei por que estou lhe contando essa história – concluiu Juca Colosso.– Acho que precisava desabafar e como você gosta de me ouvir…
De fato, o episódio era intrigante, para dizer o mínimo. E se transformara, para Bruno, no ponto de partida para o que poderia ser uma grande história – talvez até um romance que poderia revelá-lo para o grande público. Na sua narrativa, o personagem principal, inspirado em Juca Colosso, decidia ir atrás da verdade e descobrir quem eram, afinal, Pirão e Coquinho.
Poucos dias depois de começar a escrever a narrativa, Bruno encontrou Juca Colosso no portão do depósito. Falou do computador que tinha recebido como prêmio, contou sobre a história que estava escrevendo.
– Uma idéia que eu devo a você, Juca. Aliás, se sair mesmo um livro, como espero, será dedicado a você. É uma promessa que lhe faço.
Para sua surpresa, o homem não gostou da notícia, não gostou nem um pouco. Disse que preferia não ser personagem de uma história daquelas.
– Mas você não será personagem – ponderou Bruno. – O personagem tem outro nome: Chico. Não tem nada a ver com Juca Colosso, tem?
Mas Juca não parecia convencido; na verdade, estava até contrariado, perturbado mesmo. Chateado com aquela imprevista reação, Bruno disse que poderia desistir da dedicatória. E acrescentou:
– Só não entendo por que você está tão aborrecido. Francamente, Juca, muita gente gostaria de aparecer num livro…
– Não eu, Bruno. Não eu.
Bruno hesitou. Finalmente, resolveu formular a pergunta que estava trancada em sua garganta:
– Do que é que você tem medo, Juca? Fale, pode falar. Você sabe que em mim pode confiar.
Juca hesitou, e por fim fez um gesto de “deixa prá lá”.
– Essa conversa está ficando muito desagradável, Bruno. Melhor a gente parar por aqui. Esqueça o que eu lhe disse, por favor.
A conversa deixou Bruno muito contrariado. Seria o caso de desistir da história? Depois de pensar muito chegou à conclusão de que não, não desistiria. A idéia o empolgara e agora ele iria até o fim. Tomaria todas as precauções para não revelar a identidade de Juca Colosso, mas iria até o fim.
Mas agora não havia mais história nenhuma. O computador tinha sido roubado e ele, inexperiente, não tinha salvo o conteúdo num CD. Claro, poderia começar tudo de novo; certamente não era o primeiro escritor, ou candidato a escritor, a perder originais. Além disso, e graças ao pai, breve teria um novo computador.
Mas havia alguns detalhes no ocorrido que o intrigavam, para os quais não tinha explicação. Em primeiro lugar: por que o ladrão roubara só o computador? Sim, era uma coisa que valia dinheiro e fácil de carregar; mas nada impedia que ele tivesse levado algum outro objeto. Por que não fizera? Por pressa? Ou será que era o computador a única coisa que lhe interessava? Mas por quê?
E dentro do computador estava a história que Bruno começara a escrever. Como veria o ladrão aquela história? Como um simples devaneio de adolescente, coisa para deletar de imediato? Ou teria algum interesse na narrativa? Uma idéia aparentemente absurda ocorria a Bruno: o homem que entrara em sua casa não estava atrás do computador, estava atrás da história que ele escrevera. Mas por quê?

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